Não tenho tido o costume de escrever por aqui sobre fatos do dia a dia, que ganham as manchetes do PIG, com noticias para lá de polêmicas... Tanto por estar assoberbado de trabalho, como também e principalmente, para evitar quaisquer narrativas calcadas num ódio viceral da loucura e insanidade que nos deparamos diariamente com o noticiário (não importando de qual temática, do fascismo, da política, da economia, da crise do capitalismo em geral).
Não quero, todavia, perder o momento para uma reflexão sobre uma notícia que, como tantas, ganhou as páginas da imprensa e do tribunal do ódio da internet. Trata-se da notícia de um fato ocorrido ontem com uma juíza do trabalho que surtou com uma testemunha, pelo fato desta não tê-la chamado de Excelência.
De ante mão, já digo que sou muito crítico ao Poder Judiciário em geral, não só pelo aspecto marxista onde me filio no campo filosófico/radical/revolucionário. Como também pela prática diuturna, na disputa político-jurídica, do ofício que exerço. Tampouco caio na generalização de costume, cá e acolá, especialmente no aspecto de preconceitos generalizantes... Meu mote, aprendido a duras penas, para atuar no ofício como causídico desde meu retorno a esse mundo em 2.013, vem de Vinícius de Morais - o machista romântico que se destacou na poesia e na musica brasileira especialmente por seus afro-sambas com Baden Powel – é o de que, para viver nessa vida “é preciso ser cortês, sem cortesia, doce e conciliador, sem covardia, saber ganhar dinheiro com poesia, e não ser um sonhador...”. Nesse sentido, quer com a parte contrária, quer com os juízes, tento me afastar de angustias e decepções empíricas prévias, observando o momento presente, num pragmatismo da realidade, mantendo as possibilidades do agir frente à conduta daqueles com quem antagonizo, sem perder os objetivos da representação de interesses na disputa que se põe no tabuleiro imediato. Daí que, ao longo de quase 25 anos de advocacia, já tive contato com inúmeros juízes, muitos dos quais para com quem tenho respeito, alguns dos quais mantenho relações de amizade e admiração.
Ainda assim, as mazelas diuturnas, que emergem, cá e acolá, advindas das disputas judiciais, por vezes me causam repulsa e ojeriza. Já tive oportunidade de escrever com grande eloquência e contundência contra situações de autoritarismo e machismo no judiciário, especialmente no caso da Mariana Ferrer e do juiz da vara de famílias da zona lestes de São Paulo que ofendia as vitimas de violência doméstica.
Ainda no contexto das considerações preliminares, tampouco é minha intenção aqui fazer qualquer defesa direta à magistrada em questão. Não a conheço, não sei de seu histórico de vida, suas motivações, valores ou preconceitos. Todavia, entendo como repugnante o fato objetivo gravado em vídeo (palavras faladas se perdem no vento, palavras gravadas se perpetuam no tempo), como expressão de uma conduta extremamente abusiva e autoritária, que rememora condutas senhoriais de um tempo que se pensava relegado ao passado, relatado meramente nos livros de história em seu sentido negativo. Ainda mais contra uma pessoa leiga que, muito provavelmente, nunca tenha ouvido falar na palavra “Excelência”.
Feitas tais premissas, são 2 fatores que quero propor para o entendimento das condições que levam a esse aumento do autoritarismo judicial e a saúde mental dos juízes de primeira instância a partir do que há de mais avançado na ciência da sociabilidade da crítica marxista contemporânea.
Antes de mais nada, contrariamente ao senso comum, afirmo que o processo judicial é uma espécie de “fazer política”, por vias próprias, que se distingue da política no plano direto da produção de leis (na teoria clássica inerente ao Poder Legislativo) ou de sua execução (Poder Executivo). De maneira simplória, a revelar o caráter social político do direito e da justiça, tal se manifesta e se representa aqui pela mera adjetivação, positiva ou negativa, impulso da disputa dialética entre as partes. Como também, como resultado, a síntese do processo judicial, a reproduzir o direito em suas formas sociais, e se expressa pelas máximas: Procedente X Improcedente, legal x ilegal, justo x injusto, certo x errado.
Daí que, contrário aos idealismos dogmáticos juspositivistas, em que as leis, a partir da norma fundamental são expressão de uma razão imanente, eterna, por vezes inacessível ao “saber humano”, como demiurgo teleológico da reprodução do status dessa razão (ou como afirmou Hegel à justificar as revoluções burguesas, o Estado é a Razão em si e para si), quando falamos da justiça e de suas institucionalidades no entorno do Poder Judiciário, aqui estamos tratando diretamente de uma expressão da sociabilidade, sujeita ao processo histórico aberto, mutável, imprevisível, construído no acaso do encontro das contradições e das práticas reais da vida em sociedade. Afinal, o futuro não está escrito, não se podendo falar de um telos, quiçá do fim da história (como festejaram os liberais após a queda do muro de Berlim e o fim da URSS para, de maneira ufanista, celebrar a vitória do capitalismo ocidental frente ao capitalismo monopolista de estado do mundo soviético).
Sob tal parâmetro, não se pode compreender o Poder Judiciário, enquanto manifestação da institucionalidade do poder estatal, em termos absolutos ou quiçá em si mesmo. Antes, o entendimento científico do Poder Judiciário, no plano filosófico e cientifico da sociabilidade, está sujeito e inserido na totalidade do plexo social, sendo a teoria das formas sociais, a partir da leitura de Marx, um dos métodos científicos fundamentais para seu entendimento cientifico. Leitura esta que advém da leitura das formas sociais em que se estruturam o modo de produção capitalista, que se desenvolvem sob o impulso da crise e das contradições a tal sociabilidade, em suas variações no plano interno à historicidade da sociedade capitalista, especialmente na fase atual que, no âmbito marxista, se denomina por modo de produção pós-fordista.
Por se tratar de um conceito marxista fundamental para o entendimento científico da sociedade, mas de pouco conhecimento do público em geral, por modo de produção, na tradição marxista, se entende a forma pela qual se estruturam determinadas relações sociais de produção. Ou seja, a prática social dominante na qual se dão as interações sociais entre indivíduos, donde se estrutura a sociedade. Para além de leituras idealistas da pós-modernidade, em que se poderia explicar o todo social por qualquer ponto de vista, numa totalidade solta e sem sentido, a teoria crítica fundada em Marx permite a compreensão da totalidade, a partir das práticas sociais dominantes, calcadas na produção da materialidade social em termos de relações sociais donde se irradiam todo o plexo social – da ética à estética, da política ao direito. As quais refletem, no plano intermediário e imediato, nas ideias dominantes de um determinado tempo histórico, em sentido positivo, como manifestações antagônicas que se originam da Ideologia da forma mercadoria.
Resumidamente, não se pode entender o mundo pelo objeto produzido, pouco importando, até mesmo a utilidade daquilo que se produz. Ao revés, no plano das formas sociais – na tríade de sua base real mercadoria, valor, dinheiro - não importa o que se produz, mas como se produz (ou seja a prática das relações sociais). Tampouco indiretamente importa a utilidade daquilo (o valor de uso, como mero suporte de valor), mas sim o valor que se produz, em suas determinações em última instância, para sua acumulação de mais valor (sob suas formas desenvolvidas de salário, renda e juros), nas quais se da a reprodução da sociabilidade em termos da práxis real dos indivíduos produzidos socialmente.
Na tríade mencionada acima, como Marx afirma já no abre alas de sua obra maior, O Capital, a forma elementar é a forma mercadoria, forma social na qual o trabalho concreto (forças produtivas), se inserem no plexo de relações sociais como trabalho abstrato, essência da forma valor, forma pela qual se media, na totalidade dominante, as forças produtivas são coagidas a se inserirem no processo produtivo em termos de tempo de trabalho abstrato socialmente necessário para a produção de valor, onde toda particularidade é mediada pela forma valor (representadas pela forma dinheiro e quantificadas por preços de salário). Sendo mediadas e determinadas, em última instância, não pela utilidade daquilo que se produz (valor de uso) mas sim pela regidas por sua parte alíquota na produção de capital, do valor que se valoriza para fins de sua acumulação e reprodução ad infinito.
Ainda sobre as bases científicas e metodológicas de Marx, é importante fazer três considerações. Primeiro, as categorias centrais de Marx no entorno da crítica ao capital não podem ser lidas num sentido mecanicista, determinista, lógico economicista. Ao revés, a teoria de Marx é uma teoria da sociabilidade capitalista em que há determinação, a despeito de não haver um telos na história, determinação esta que se dá ao acaso do encontro real e se afirma, sobredeterminadamente, em última instância. Numa totalidade estruturada cujo movimento contraditório real na reprodução do capital dá marcha a sua historicidade, tendo o capital, enquanto forma social, o sujeito desta historicidade, no desenvolvimento do ao acaso da realidade frente suas contradições dominantes.
Um segundo aspecto fundamental para um adequado entendimento da teoria marxiana e das correntes marxistas contemporâneas (conhecidas como a nova leitura de Marx a partir dos anos 1.960), está relacionado ao fato de que a teoria de Marx não se limita e tampouco pode ser entendida como meramente circulacionista. Ao revés, a circulação mercantil, momento imediato apreendido fenomenicamente é um momento desta totalidade real, dominante e contraditória, onde o mais valor se realiza sob a forma de acumulação de dinheiro (na tríade salários, lucro e juros que somente tratados no final do Livro 3 d’O Capital). Marx não é um mero circulacionista vulgar (como muitos socialistas vulgares de seu tempo e que se perpetuam, cá e acolá, das ciências econômicas, políticas e jurídicas). Ao tratar da totalidade dominante contraditória a partir da forma mercadoria, forma valor e forma dinheiro, Marx demonstra que os processos coercitivos contraditórios de suas formas “ocorrem às costas dos indivíduos”, onde as forças produtivas são coagidas a se inserirem na totalidade do capital, sob a forma mercadoria - como tempo trabalho abstrato mediado pelo dinheiro em termos de preços de salário - no processo de produção que, na totalidade do valor em suas múltiplas dimensões e momentos de criação e realização - produção, circulação, distribuição e consumo - mutuamente se imbricam e se contradizem.
A terceira consideração fundamental – centro de inúmeros debates sobre o método dialético de Marx – reside na contradição, em suas múltiplas dimensões como movimento real necessário à produção de mais valor, que não se limita ao plano fenomênico do antagonismo de luta de classes. Mas sim da contradição em movimento necessário e inexorável da reprodução social do capital, num movimento em que a essência do valor – o tempo de trabalho abstrato – é inserido e simultaneamente repulsado, negado no processo de produção de capital pelo constante desenvolvimento das técnicas de produção. A máxima que perpassa e determina a todas as classes de se produzir mais em menos tempo, para se acumular mais riquezas. A contradição em movimento do capital, para sua reprodução, demonstra que a crise – estrutural e/ou cíclica - é o motor da historicidade da reprodução da sociabilidade capitalista, cujo telos, em última instância, consiste na produção de valor para sua acumulação, como o início, o fim e o meio do movimento real da sociabilidade capitalista.
Dessa estrutura real, contraditória e portadora de crises da sociabilidade capitalista se derivam outras formas sociais (como a política estatal, a jurídica, estéticas e éticas) num processo de conformação (conceito desenvolvido pelo Alysson Mascaro no Estado e Forma Política, recomendo também, sobre o debate da derivação o livro A teoria da derivação do Estado e do Direito do Camilo Onoda Caldas), das formas da superestrutura pela infraestrutura (utilizando aqui uma alegoria usada por Marx em seu texto de 1.859), numa relação de coerção e imbricação sobredeterminadas (não causal, mas ao acaso do encontro da realidade social), que mutuamente se interpenetram todas as formas sociais e se desenvolvem no processo histórico no desenvolvimento de suas contradições dominantes (para saber mais sobre isso me chamem no privado, mas já recomendo ler Mao e Althusser).
Pois bem, no plexo das formas estruturantes do capitalismo e no plano interno de sua historicidade, a realidade muda no entorno das contradições reais, impondo coerções que se conformam no plano superestrutural sem, contudo, haver uma logica causal e de identidade necessária de uma forma sobre a outra.
Nas fases da historicidade internas ao modo de produção capitalista, os últimos 50 anos são marcados por uma transição ruídosa e destrutiva do modo de produção fordista em direção ao modo de produção pós fordista (vulgarmente também chamado de neoliberalismo). Numa transição do regime de acumulação de capital de caráter dominante industrial para a dominância do regime de acumulação calcado, dentre outros aspectos sociológicos, no entorno da centralidade da financerização das relações sociais a partir da produção de capital fictício (tema para outro texto). Tal determinação, em última instância, não se limita meramente ao aspecto econômico (tratado vulgarmente pela ciência econômica do valor meramente em seu aspecto quantitativo, subjetivista ou até mesmo naturalista).
As contradições sobredeterminadas da reprodução do capital no pós-fordismo em crise abismal especialmente desde 2.008, se imbricam no plexo da totalidade das relações sociais capitalistas. Inclusive no mundo jurídico, se revelando pela exponencial aumento dos conflitos sociais – especialmente dado aumento em progressão geométrica das relações de consumo em caráter global, e pelo devir de acumulação de mercadorias pela produção exponencial e quase imediata do desejo de consumir, como única forma de afirmação da identidade individual e reconhecimento social de cada indivíduo - que se apresentam à tutela jurisdicional do Estado.
Fenomenicamente isso se apresenta ao Poder Judiciário especialmente a partir dos anos 1.980 (no Brasil, com a chamada constituição cidadã, alcunha equivocada, pois se insere já no contexto do pós-fordismo e no reconhecimento do individuo não meramente como portador de sua força de trabalho, mas também como consumidor de direitos). Impondo, a forceps, o rompimento do elitismo característico das fases mercantilistas e colonialistas do capitalismo então vigente (excetuada a justiça do trabalho já criada no contexto do fordismo dominante a partir dos anos 1.930/1.940) até a primeira metade do século XX. Como também do formalismo processualista dominante no mundo jurídico até meados dos anos 1.990. Sobre o assunto, meramente a título ilustrativo deste debate no plano dogmático processualista juspositivista, esse rompimento se apresenta no entorno do o caráter privatista do processo – dominante até 1.950 – posteriormente no caráter publicista do processo em sua relação aos tratados de direitos humanos multilateriais do pós segunda guerra – dominante até 1.990/2.000 – e o retorno do caráter publicista/privatista finalista, sob o auspicio de princípios tais como da efetividade e celeridade da jurisdição, característico da dogmática processualista dominante a partir dos anos 2.000 até a atualidade.
No desenvolvimento dessas contradições e com o aumento exponencial de processos, a despeito de algumas regulações específicas havidas nos anos 1.990 (como a Lei da Arbitragem que já se insere como característico do pós fordismo, ou as reformas pontuais no CPC entre 1.994 a 1.999), no início dos anos 2.000 o debate da reforma do Poder Judiciário é alçado como um dos objetos centrais do debate político nacional (não, não é o mensalão que coloca na boca do povo o nome dos ministros do STF, esse processo se inicia muito antes). Sob a tutela da social democracia brasileira – de centro direita do PSDB à centro esquerda do PT – surge um consenso geral da necessidade de uma reforma significativa na estrutura do Poder Judiciário Brasileiro, que resulta na Emenda Constitucional 45 (a dissertação de mestrado da Leticia Garducci é fundamental nesse debate).
Com a regulação que dai emerge, pelo rearranjo de um dos tripés do arranjo político-jurídico institucional do Estado brasileiro, dali se irradia e se orientam uma série de rearranjos regulatórios na estrutura da administração da jurisdição, da implementação da tecnologia digital emergente em detrimento do aumento de servidores do Poder Judiciário. Como também, 10 anos depois, no rearranjo regulatório dos processos judiciais (pela reforma do Código de Processo Civil, da Lei de Mandado de Segurança e do Processo do Trabalho (excetuado o processo penal).
De maneira sucinta, destaco 5 pontos centrais do rearranjo institucional do Poder Judiciário a partir dos anos 2.000:
1) A ampliação e concentração de poder decisório nas instâncias superiores (STF, STJ especialmente), com a normatização das sumulas vinculantes, enunciados, temas repetitivos e principalmente, das reclamações constitucionais e dos processos de controle de legalidade e constitucionalidade em caráter concentrado com efeitos modulatórios das decisões;
2) O rompimento dos formalismos procedimentais nos atos processuais, com a ampliação da arbitrariedade aos membros das instâncias judiciais inferiores no trato imediato dos processos individuais;
3) O desenvolvimento (ainda não dominante mas sob enorme pressão de assim se tornar na próxima década), de alternativas de solução de conflito com a mediação estatal, num processo de privatização da competência jurisdicional, por meio de vias procedimentais de arbitragem e mediação extrajudicial;
4) A precarização das condições de trabalho da magistratura, especialmente pela ausência de investimentos em estrutura básica e, principalmente, de funcionalismo (não só de magistrados, mas principalmente de servidores),
5) Aumento da cobrança e controle de produtividade dos magistrados de 1ª instância frente as metas do CNJ e pelo desenvolvimento tecnológico no Poder Judiciário.
Esses dois últimos aspectos são fundamentais para entendermos a saúde mental e os atos de arbitrariedade que cada vez mais se tornam recorrentes, alçados as manchetes dos jornais cá e acolá.
Para quem atua no direito há mais tempo, como é meu caso que atuo profissionalmente desde 1997, é inconteste que os magistrados atualmente sofrem uma pressão tamanha a produzirem em massa e cada vez num menor tempo, decisões judiciais de quaisquer espécie.
Sem querer ser saudosistas, mas já sendo, na minha formação inicial (lá pelos meados de 1.996, momento em que a máquina de escrever já havia quase sido aposentada, substituída pelos computadores pessoais dos magistrados e advogados), uma decisão judicial era dada quase como se fosse uma monografia jurídica. Discordando ou não, nesse breve período (fim dos anos 1.990, inicio dos anos 2.000) se percebia (ao menos no processo cível estadual e federal, elite dos estagiários do meu tempo de faculdade), um cuidado na apreciação dos fatos e, principalmente, na fundamentação jurídica da decisão.
Todavia, nas contradições da vida, o Ctrl C + Ctrl V (e posteriormente programas vinculados ao Word baseados no tageamento de temas e tópicos), se num primeiro momento, permitiram uma adequação à pressão pelo ao aumento exponencial da produtividade judicial, ainda moroso pelo fato dos processos tramitarem em papel (causando situações das mais bizarras, como por exemplo, juízes trocando sentenças de casos totalmente distintos a despeito de partes iguais, com mera modificação da fonte, espaçamento e tamanho da letra – já vivi isso numa disputa milionária e pasme, quando embarguei para apontar, com toda a cortesia, esse erro, tomei – ou melhor cliente representado pelo escritório em que trabalhava - uma multa de embargos protelatórios e litigância de má-fé só resolvida 5 anos depois). Num momento seguinte, a tecnologia permitiu as condições necessárias para o controle direto do aumento da produtividade jurisdicional.
Na atualidade, cada etapa do processo é objeto de dados estatísticos de produtividade que impõe a marcha da administração do Poder Judiciário em termos meramente quantitativos, em detrimento da qualidade da prestação jurisdicional. De modo dominante na atualidade, uma decisão judicial – desde simples despacho, passando por decisões liminares (tutela provisória) e principalmente as sentença resolutórias do mérito da lide – por vezes nem possui um relato dos fatos processuais. No mérito, muitas vezes as decisões se limitam à parafrasear decisões dos tribunais superiores, a partir de modelos pré-definidos, ainda que não totalmente aplicáveis às peculiaridades do caso concreto. Também é recorrente o “esquecimento” de se apreciar, amiúde, os fatos, fundamentos e pedidos que feitos pelas partes, dando ensejo a proliferação de embargos declaratórios, alçados à condição de vilão no debate jornalístico do final dos anos 2.000 como o vilão da morosidade do Judiciário.
Ao mesmo tempo em que, no plano da relação imediata da parte, representada pelo advogado, com o magistrado, o se recorrer por meio de embargos de declaração quase se torna uma ofensa, prontamente respondida com um texto genérico base em toda a magistratura sob a máxima de que “o juiz, ao formar sua convicção, não está obrigado a responder a todos os aspectos que deduzidos pelo Embargante” sob pena de aplicação de multa processual por má-fé. Quando o que se almeja meramente é a prestação jurisdicional de qualidade, a permitir, no mínimo a dialética processual inerente à jurisdição.
O processo judicial se transforma num diálogo surdo, em que cada parte nesta relação tripartite, se limita a afirmar sua própria narrativa, tendo o ápice a autoridade da narrativa objetivada na decisão do magistrado. Como forma de se afirmar, de maneira vazia e por vezes desesperada, a autoridade jurisdicional (em crise de credibilidade), justificada do ponto de vista regulatório, com a ampliação arbitrariedade atribuída ao magistrado, especialmente por recomendações e enunciados de reuniões fechadas à integrantes de fóruns de jurídicos restritos. Quando na realidade, o que tal fenômeno revela é a coerção entorno escalada da produtividade e do controle imposta à magistratura. Mas paro por hora, pois meu objetivo aqui não é trazer a lume lamurias da dura labuta causídica.
Por óbvio também que aqui ultrapassei alguns limites, até mesmo caindo no senso comum da generalização. Intencional ou não, há aqui um ponto central. A pressão do aumento da produtividade e o controle da atividade jurisdicional. As quais se tornam possíveis pelo desenvolvimento tecnológico do controle da produção de decisões judiciais, como também pela concentração de poder das instâncias superiores aos magistrados de 1ª instância, que agora se representa especialmente pelo uso da jurimetria e da inteligência artificial na produção das decisões judiciais.
Assoberbados com milhares de processos, a vida do juiz de 1ª instância acaba se inserindo numa panela de pressão, entre o respeito mínimo às formalidades, sem o cuidado padrão que deveria ser de rigor à analise de caso a caso (e não, nunca entendi, mesmo no passado elitista ser a Justiça capitalista uma expressão do sentido aristotélico da artesania do justo).
E não é que Marx volta contudo como um método cientifico fundamental para entender a sociabilidade capitalista, pois aqui é possível uma analogia ao judiciário do que Marx há muito definia como aumento do mais valor absoluto e relativo, sendo a crise expressão do aumento da composição orgânica do capital pelo aumento de sua composição técnica, num processo em que a subsunção real do trabalho do magistrado ao capital que o pressiona a ser transformado em mera geleia de trabalho humano abstrato. Mas não, não é momento do aprofundamento das categorias centrais da teoria do valor em Marx. Voltemos a programação normal.
A depressão é a “doença do século XXI”, segundo a ciência liberal, “doença” produzida socialmente e que se insere no processo de acumulação de capital pela produção da necessidade de consumo por drogas químicas da indústria da medicina farmacêutica a ser permitir uma normalidade para o labor. Prefiro tratar o assunto na produção de pulsões e desejos intangíveis e impossíveis à própria dimensão de uma normalidade inalcançável de produtividade e consumo pós-fordista. Não quero adentrar aqui no campo da psicanálise, todavia, o fenômeno da depressão se espraia pela magistratura de 1ª instância do poder judiciário. E se manifesta, inclusive e especialmente, pelo autoritarismo que é o mote desta análise, em “desobservância às prerrogativas do advogado” e em desrespeito aos jurisdicionados.
Cada vez é mais usual e “normal”, juízes que não atenderem e/ou dificultarem seu acesso à advogados, a tratamentos ríspidos aos advogados e partes audiências virtuais. Quadro este que se agrava, de maneira acelerada, no contexto da pandemia da COVID, fundamental para a acumulação capitalista.
O fenômeno do autoritarismo também podem ser compreendidos frente à crise de credibilidade do Poder Judiciário como um todo – no plano micro das “vontades” das partes não serem atendidas pela “justiça dos homens”, no plano macro no contexto da concentração de poderes das instâncias superiores, somadas ao discurso da ultra direita fascista contra o Judiciário (mas ai já é tema para um outro texto que invariavelmente tratará da crise do pós-fordismo e da não estabilização de suas contradições desde 2008).
Tudo isso a despeito de, na divisão social do trabalho, o magistrado ser uma carreira mais bem paga não só da carreira jurídica, como também da sociedade trabalhadora como um todo (sim um magistrado especialmente de 1ª instância a despeito de todos os seus privilégios e altíssimos salários, é um trabalhador e não quero aqui entrar na discussão da disputa entre trabalho braçal e intelectual), dá ensejo a inúmeros processos de deterioração psicanalítica desta classe de trabalhadores. O que dirá então dos demais servidores do judiciário. Ou dos advogados. Ou das demais profissões e classes trabalhadoras, todas elas também sujeitas ao aumento exponencial da produtividade pelo capital calcado no entorno do modo de produção pós-fordista.
Desses dois últimos aspectos, entro no segundo ponto da reflexão que proponho. A magistratura como carreira.
A magistratura, como as demais carreiras jurídicas públicas de um modo geral, no plano das relações de trabalho se destaca por ser, a um só tempo, a carreira mais bem paga de todo o funcionalismo estatal. Como também uma carreira que, historicamente, tem grande relevância no plano social, dada a estruturação do modo de produção capitalista a partir do sujeito de direito, por sua subjetividade jurídica individual e egoísta sobre as qualidades de sua força produtiva (daí o conceito de propriedade privada) no plexo da sociabilidade capitalista. No plexo social, o magistrado, com sua beca e seu código de baixo do braço, se apresenta socialmente como o detentor da “verdade da razão”, detentor da palavra final sobre o certo e o errado, tal qual os padres com suas batinas e a bíblia debaixo das mãos, quando vigente o modo de produção feudal e mercantilista.
O direito capitalista ganha um impulso ainda maior quando é alçado a única pauta da luta de classes pela esquerda conservadora/liberal/progressista, especialmente desde o fim dos anos 1980, quando a esquerda, de maneira dominante, abandona em definitivo a luta revolucionária e se limita meramente à luta ideológica por direitos sob as balizas do capital e de suas formas derivadas (Estado e Direito). Quer saber mais? Indico dois livros pelo menos: Alysson Mascaro, Estado e Forma Política, Bernard Eldeman, a legalização da classe operaria. Sem prejuízo de todo o debate da Social Democracia e do Humanismo frente aos movimentos revolucionários dos anos 1920 – Rosa de Luxemburgo em sua história e obras teóricas são fundamentais, ou a querela do Humanismo no entorno do PCB francês frente às posições de Louis Althusser (o livro da Juliana Paula Magalhães é fundamental nesse debate).
No acaso do encontro, também nesse momento histórico, há, como já afirmamos anteriormente, o rompimento do caráter elitista do Judiciário (exceção da Justiça do Trabalho já criada sob as balisas fordistas e que diretamente atacadas ao longo dos últimos 30 anos pela ideologia neoliberal), especialmente nos anos 1980/1990. Rompimento este também que importam em coerções sociais que também rompem com a aura social por traz da carreira jurídica de até então.
Exceções a parte - de magistrados que atuam por vocação e/ou por idealismo de justiça – de modo geral, o cargo da magistratura deixa de ser um fim em si mesmo, passando a ser um meio de vida, como qualquer outra profissão. O meio do magistrado, antes isolado por suas tradições, linguajares intangíveis ao “homem médio”, restrito aos meios acadêmicos e às mais altas classes sociais, passa a ser a realidade da classe média. Tendo sua vida desenvolvida no mundo dos clubes, dos shoppings centers, dos restaurantes gourmet, das viagens para Miami e para a Disney (quem não se lembra de um desembargador justificando o auxilio paletó pela necessidade do juiz ter que comprar ternos por lá). A formação do jurista, antes calcada na literatura romântica, na filosofia e na teoria (argh, mas como dizem, gosto não se discute) juspositivista, se transforma numa formação dominantemente extremamente especializada e tecnicista. Disciplinadas no entorno de matérias de maior aderência ao gosto produzido ao calor do momento do mundo jurídico, definidas pelo desejo produzido desde as mais tenras fases de sua formação jurídica - no entorno de temas tais como penal, tributário, empresarial, trabalhista, família, cível, etc. Cada qual com seu linguajar próprio, cada qual com suas vestes características próprias.
Ainda que nos concursos haja a exigência de uma erudição técnica dogmática no entorno de debates pontuais (antes da doutrina, agora da jurisprudência superior), a formação política ideológica, a constituir sua subjetividade e os preconceitos das carreiras jurídicas, não mais se faz pelos debates teóricos e filosóficos do mundo acadêmico, mas sim pela ideologia tecnicista da economia vulgar da lógica do lucro empresarial, propagados, cá e acolá, por aparelhos ideológicos especializados. E mais recentemente, pelo emboprecimento das narrativas no entorno das redes sociais (twitter, facebook), dos “memes do whatsapp” e suas “fakenews”, no contexto da crise sem solução imediata desde 2.008 vistas do modo de produção pós-fordista .
Tudo isso se reflete não só das decisões judiciais em si consideradas, mas principalmente da conduta e das condições de saúde mental dos magistrados. Ao mesmo tempo sujeitas às contradições inerentes à carreira de magistrado, especialmente e como já tratamos, pelo aumento exponencial da produtividade impostas no entorno da conformação do modo de produção pós-fordista sobre a institucionalidade do Poder Judiciário.
O sonho da carreira jurídica da magistratura (como também das demais carreiras, como a de promotor, procurador e da advocacia) se transforma num pesadelo.
A exceção se transformou em regra, como descobre Mané Galinha no célebre “Cidade de Deus”, regra esta que, com o perdão do spoiler, ao final determina sua morte no filme. Se no passado, a exceção da regra era advogados com 40 a 50 anos irem para as carreiras públicas, passando em concursos frente a experiência acumulada; agora já não é mais exceção ver que carreiristas formados no final dos anos 1.990 e início dos anos 2.000 - que ingressaram nas carreiras publicas alguns anos após 5 a 7 anos de estudo bitolado em cursinhos e faculdade - abandonam as carreiras jurídicas públicas com menos de 50 anos de idade, ante a possibilidade de ganhos (ainda) maiores na iniciativa privada. Outros ainda presos a seus cargos os transformam como plataforma para alavancar outras posições de prestígio (especialmente no mundo dos “influencers digitais” da atualidade também relacionados à crise e precarização do ensino jurídico superior).
Uma grande maioria, contudo, com medo do futuro e, principalmente, da perda imediata de suas condições materiais de vida (abastada), entram num processo de depressão e transtornos psicanalíticos, cuja afirmação de sua autoridade, por vezes, de maneira irascível e deselegante, deixam de ser a exceção e voltam a ser a regra.
Esse complexo cenário, que não pode ser lido de maneira linear, causal, mas sempre no entorno do desenvolvimento das contradições da sociabilidade capitalista, são fatores (claro outros podem se aderir aqui, por exemplo, a formação de suas subjetividades e convicções pelo preconceito e ideologia, por exemplo) para se entender os rompantes autoritários que, por meio das plataformas digitais, por vezes, entram no debate ético-moralista das redes sociais.
O fenômeno do autoritarismo no seio das carreiras jurídicas importa, e aqui fazendo juízo de valor, numa perda do senso de realidade das carreiras jurídicas como um todo, inclusive dos magistrados, sobre seus “tutelados” – transformados em meros objetos na produção capitalista de riquezas, para legitimar e justificar a titularidade, na disputa da riqueza total produzida, de um maior naco da riqueza social total, por meio da venda de seu tempo de trabalho para recebimento de seus vultuosos salários. Constantemente ameaçado pelo discurso neoliberal de eficiência e diminuição de gastos, discurso este que tem a clara intenção de justificar o assalto legal ao orçamento estatal totalmente “endividado”, pela acumulação de superávits primários para pagamento de juros exorbitantes e infindáveis, na ciranda do regime de acumulação de capital fictício característico do modo de produção pós-fordista.
O autoritarismo como visto no caso da juíza do trabalho nesta semana, reflete de maneira vazia e desesperada, um grito no silêncio ensurdecedor da sociedade como um todo, ao mesmo tempo que especificamente nesta classe de trabalhadores, se presta como afirmação de sua própria autoridade para a manutenção de seu meio de vida. A realidade do capital (recomendo a leitura do livro do camarada magistrado Antonio Galvão sobre Mark Fischer) defenestra uma das últimas fronteiras do caráter humano da sociedade: a artesania da justiça...
Goste muito da versão final! Ninguém está a salvo (nem os juízes, sejam eles de Berlim ou de Floripa) deste mundo cãopitalista.
Glauco